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POBRE MENINA RICA
Numa de minhas romarias ao Parque Guinle, cheguei à casa de Vinícius levando umas dezesseis músicas inéditas. Como de praxe, deixei o material no “gravadorzinho“ e fui para minha casa aguardar uma “semaninha”. Esta passou e depois mais outra. Como eu não tivesse notícia do poeta, resolvi dar uma incerta. Quando entrei pela salinha onde ele costumava trabalhar, não se deu por achado: -“Ah! Parceirinho, que bom que você apareceu. Estou aqui com as tuas musiquinhas há quinze dias e não consegui fazer nada!” Tive que perguntar: - “Que que houve?” “Não - começou ele - é que com essas musiquinhas novas, me pareceu que você tava querendo me contar uma historinha...” Como eu não achasse nada pra dizer, ele continuou: -“ Repara bem nessa primeira musiquinha. Vê se ela não sugere um cara se declarando pra sua amada?” Pensei que em se tratando dele, isso não dizia nada de novo. Mas esperei que prosseguisse: -“Agora vê se essa segunda musiquinha não é a amada respondendo a declaração pro cara?” E diante da minha perplexidade, concluiu: -“Parceirinho, você escreveu uma comedinha musical!” Ainda surpreso, exultei: -“Que legal, Vinícius! Desde a Missa Agrária com Guarnieri que eu estou mesmo querendo fazer uma comédia musical.” Nisso, Vinícius mudou de tom: -“É, mas aqui no Rio de Janeiro, neste mundanal ruído (palavras dele), eu não consigo escrever, não. Mas se, em contrapartida (palavras dele), nos mandamos pra casa de minha quarta mulher lá em Petrópolis, a gente mata essa comedinha em uma semana!”
Dito e feito. Poucos dias depois, estávamos na casa da quarta mulher de Vinícius, em Petrópolis, tendo levado conosco nosso material de trabalho, a saber: violão, gravadorzinho e - como era de se esperar - uma caixinha contendo doze litros de “cachorrinhos engarrafados”, que era como ele se referia ao sagrado uísque - em sua opinião, o melhor amigo do homem. Vinícius consumiu oitenta porcento do canil em questão e à medida que assim fazia, me devolvia em forma de comédia musical que ele, num dos momentos mais ricos de nossa parceria - e de minha carreira - batizou de Pobre Menina Rica. - “Parceirinho - foi como ele começou a contar a história - nossa comedinha se passa num terreninho baldio carioca. Do lado do baldio tem um edifício de apartamentos e lá na cobertura mora a Pobre Menina Rica! E o terreninho, por sua vez, é habitado por uma comunidade de mendigos...” - “De mendigos, Vinícius?” - interrompi. Logo na minha comédia - pensei - é que ele vai botar mendigos!” O poeta me tranqüilizou: - “Não se preocupe, não, parceirinho. São uns mendiguinhos simpaticíssimos, incrementadíssimos e superorganizados, viu? Eles saem todo o dia, de manhã, pro seu trabalhinho de pedir esmola e liderados por um Mendigo-chefe. Esse Mendigo-chefe, você imagina um crioulo todo grande, todo gótico, dentadura cintilante e um pé quarenta e quatro. A outra perna é uma perninha de pau, mas que em nada o envalida nem para o amor nem para o samba. Esse é o mendigo Carioca que todos os dias, ao despertar, chama os outros para o labor cotidiano...”
E Vinícius continua a história: - “Então parceirinho, vai chegando naquela comunidade um novo mendigo. É o Mendigo-poeta e ele é o galã da história. Mas já vai encontrando dificuldade com um outro mendigo que habitava previamente a comunidade: o Mendigo-ladrão ( Num-Dô), ou melhor, o administrador dos bens da comunidade. Os dois entram em conflito, mas o Mendigo-poeta deu fim no ladrão. Com uma canção, parceirinho...”
Tem mais historinha e Vinícius conta: - “No final de um belo dia, chega na comunidade outro mendigo! Era a explosão demográfica. Trata-se de um mendiguinho tão miserável que chega a inspirar pena nos outros mendigos. Ele é um Pau-de-Arara chegado do Ceará...”
No momento mais lírico e romântico da comédia musical, Vinícius me sai com essa:
“Um dia, o Mendigo-poeta está lá zanzando pelo terreninho baldio, quando, de repente, olha para o alto do edifício e se depara com a Pobre Menina Rica na cobertura. Lá estava ela, na sacada, linda de morrer. Ah! Aquele mendiguinho se apaixonou perdidamente por ela.” Vinícius fez uma pausa. - “Mas aí, sabe, parceirinho, aquela Pobre Menina Rica também se apaixonou pelo Mendigo-poeta”. Não pude me conter: - “Peraí, Vinícius. Você acha que as pessoas vão acreditar que uma menina rica se apaixone por um mendigo?” O poeta parecia até um pouco ofendido quando me respondeu: - “E por que não, parceirinho? Era primavera!” Quem é que vai discutir com a cabeça de um poeta...
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