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POBRE MENINA RICA
De todos os modernos compositores brasileiros, sem distinção entre populares e eruditos, Carlos Lyra é o que me parece mais bem aparelhado para escrever música para teatro. E não foi à toa que eu – depois de ouvir e mais ouvir um excelente conjunto inédito de sambas e canções que o meu querido parceirinho deixara em meu gravador, aí pelos meados de 1962, para que eu neles pusesse letras - dispus-me firmemente a resgatá-los de se tornarem mais um LP lançado ao comércio, do qual resultariam, com um pouco de sorte, dois ou três sucessos, e olhe lá. Diante da particular intercomunicabilidade das músicas, do elemento teatralizável de suas harmonias, de sua expressão modularmente cênica, com as melodias como a pedirem personagens que as materializassem em sentimentos e desejos, não havia como hesitar. Em dois ou três dias nascia a história da Pobre Menina Rica que se apaixona pelo Mendigo-Poeta, num terreno baldio da cidade, onde um curioso grupo de pedintes vive feliz dentre um sistema bastante sui generis. E em cerca de duas semanas de trabalho constante, a dois, tínhamos dois terços às canções feitas e aprovadas. Tratava-se apenas de ligá-las com diálogos e danças, e viva a primeira comédia musicada brasileira em grande estilo! Um sonho por demais bom, e que duvido algum compositor sem deformações de erudição não tenha jamais sonhado.
E é aí que entra Aloysio de Oliveira. Aloysio é um homem terrível. Em setembro de 1962, estando eu posto em sossego - eu que jamais houvera cogitado em pisar como showman um palco de boate -, chega Aloysio e nos joga a Antônio Carlos Jobim, a João Gilberto e a mim, com a participação especial de Os Cariocas, num show que realmente pegou a cidade de surpresa, e conseguiu reinventar o movimento da bossa nova, diante da sua repercussão nacional e internacional. Seis meses depois, sem medo de repetir um artista (no caso, eu) num tão curto intervalo, Aloysio, sabedor do projeto da Pobre Menina Rica, repete o feito: um trailer do primeiro ato da peça, num experimento inteiramente inédito no Brasil e creio que no mundo, em matéria de show.
As luzes da boate Au Bon Gourmet se apagavam, nós entrávamos pé ante pé, quase em trevas totais. Eu ia sentar-me à minha cátedra improvisada, onde, o texto em mão, esperava, como quem espera o tiro de uma 45, o foco de luz que incidia sobre mim. O conjunto atacava suavemente a ''Marcha do amanhecer'', eu pegava discretamente o copo de uísque que tinha à mão, tomava aquele gole e começava: “Imaginem um grande terreno baldio contra o panorama tentacular da cidade ao longe...”.
Ao lado sentia a torcida de meus dois companheiros de show: Nara Leão, no papel da Pobre Menina Rica, e Carlinhos Lyra, no do Mendigo-Poeta. E durante cinco semanas a mocidade carioca e de outros estados, que nunca deixara de nos prestigiar, desde as primeiras raízes do movimento da bossa nova, comparecia diariamente para nos ver. Não há de minha parte, nem creio que da parte de Carlos Lyra, nenhuma vaidade, senão orgulho e satisfação, no reconhecimento desses fatos. A nossa comédia musicada, cujo libreto está atualmente no capricho, num futuro não superior a um ano, quando as minhas funções de funcionário do Brasil no exterior o permitirem, estará pronta para ser encenada.
Roma, novembro de 1963 Vinícius de Moraes
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